Há uma única paróquia católica para toda a Faixa de Gaza, e uma outra de cristãos greco-ortodoxos. Os cristãos eram 1017 (135 católicos) antes da guerra (entre 2,3 milhões de habitantes de Gaza).
Nesta entrevista à Fátima Missionária e ao 7Margens, feita antes de conhecido o acordo de cessar-fogo e com este número da revista fechado quando ainda não se sabia se a sua aplicação iria correr bem, o padre Gabriel conta como em Gaza falta tudo, mesmo se as comunidades cristãs – 700 pessoas neste momento – ainda descobrem formas de ajudar quem mais precisa.
Padre Gabriel, o que se passa neste momento?
É uma situação muito difícil. A situação na Faixa de Gaza é terrível, estamos todos cansados. A guerra continua e, embora se fale de tréguas, continua a haver bombardeamentos a toda a hora, muitos mortos todos os dias em toda a Faixa de Gaza, no Norte e no Sul, e as fronteiras continuam fechadas. A cada dia que passa, o número de mortos e feridos aumenta: mais de 45 mil mortos, dos quais 17.500 crianças, e 107 mil feridos, muitos deles graves, que teriam de ser tratados no estrangeiro. Ainda há cerca de 400 mil pessoas na cidade de Gaza, com necessidades de todo o tipo…
Como sobrevivem as pessoas?
Gaza está esmagada, as pessoas aqui estão a sofrer muito. Esta não é a primeira guerra, mas é a pior. No complexo paroquial temos cerca de 500 refugiados. Tentamos tornar a vida o mais ordenada possível. No aspecto espiritual, todos os dias temos uma hora de adoração silenciosa, fazemos as laudes com o povo e os religiosos, e temos a missa e o terço, rezando pela paz todos os dias. E rezamos as vésperas e completas.
Visitamos os doentes que temos aqui, os que não podem vir à igreja, damos-lhes a comunhão. Temos cerca de 40 idosos doentes.
Limitam-se à vida litúrgica?
Começámos a dar aulas às crianças refugiadas. A nossa escola tornou-se
um abrigo. Temos 500 pessoas a dormir aqui. As salas de aula tornaram-se as casas das pessoas. Na escola que criámos, damos aulas a cerca de 180 crianças e adolescentes refugiadas, com as principais matérias: religião cristã, língua árabe, língua inglesa, matemática e ciências.
Como vivem 500 pessoas numa igreja?
Desde o início, tentámos organizar-nos para as emergências, porque em várias guerras recebemos refugiados. Tínhamos aumentado um pouco as casas de banho, comprámos colchões, tínhamos comida armazenada. Isso ajudou, para dizer a verdade, apenas durante a primeira semana. Tudo o que podíamos comprar, comprávamos. A diocese ajuda-nos e obteve algumas autorizações das autoridades israelitas para trazer comida. Quando chegam alimentos, distribuímos nesta igreja e na igreja ortodoxa de San Porfírio (há lá 200 refugiados) e ajudamos as pessoas do bairro. Ajudamos muito, graças a Deus.
Apesar de todas as dificuldades.
Não se consegue tudo, mas o que se consegue, compra-se, pede-se, distribui-se. Por exemplo, [numa] semana ajudámos cerca de nove mil famílias – a maior parte delas muçulmanas –, um número estimado de 50.000 pessoas, com alguns alimentos, graças ao esforço feito pelo patriarca de Jerusalém [cardeal Pierbattista Pizzaballa] e às autorizações que nos concederam. O padre que fez a igreja da Sagrada Família [sede da paróquia] terá descoberto uma nascente de água. Por isso, fez uma grande cisterna e construiu a igreja em cima dela.
Quer dizer que têm água?
Graças a isso, durante toda a guerra, pudemos ter água e distribuir água. Não é uma água muito boa, precisa de ser filtrada. A água em Gaza está poluída há muitos anos, por causa da guerra, da pobreza, da destruição. Mas esta é uma água que, filtrada e um pouco salgada, pode ser utilizada.
Depois, há [o problema d]os medicamentos. No início comprávamos tudo, havia três farmácias cristãs. Mas os farmacêuticos vieram refugiar-se aqui e vieram com as mercadorias. Nós comprámos-lhes os produtos para ajudar. Temos um dispensário para os pobres. Numa parte da paróquia, numa sala, abrimos para o exterior, para a rua, e aí recebemos as pessoas. Mas muitas morreram porque não conseguimos operá-las.
São poucos católicos, mas muito activos.
A Igreja em geral, antes desta guerra, era e continua a ser muito activa. Por exemplo, tínhamos três escolas, com 2250 alunos. Para além delas, da Cáritas e da paróquia, tínhamos um centro de saúde num outro bairro, que agora não podemos utilizar. E dez clínicas móveis, que estão muito activas. A Igreja era muito activa em ajudar os pobres e os necessitados em nome de Cristo.
Como viram os cristãos os atentados do Hamas a 7 de Outubro de 2023?
Nenhum deles estava feliz e nenhum deles está feliz com esse ataque atroz de 7 de Outubro, nenhum deles.
Há alguma reflexão entre os cristãos sobre qual a solução para esta crise interminável?
Como católicos, sempre insistimos em que o ser humano tem um direito inalienável [à vida]. É por isso que também temos grupos, católicos e muçulmanos, em defesa da vida, contra o aborto, contra a eutanásia, contra os atentados suicidas, contra o assassínio. Falamos também do direito dos povos a existirem na sua terra; as pessoas nasceram aqui. Gaza faz parte da Palestina, tal como Jerusalém Oriental e a Cisjordânia, de acordo com o direito internacional. Os estudantes e as famílias que enviaram os seus alunos conheciam os princípios cristãos e os princípios humanos que utilizamos, sendo-lhes sempre dito que nunca devem justificar a violência e a injustiça, nunca.
Qual a sua perspectiva para o futuro imediato?
Se Deus quiser, se esta guerra acabar, vamos abrir as escolas, mas, com todas as estruturas bombardeadas, provavelmente vamos começar com um número reduzido de 400 [alunos], porque duas escolas foram bombardeadas. Mesmo que a guerra acabe, a cidade está destruída: todas as ruas, esgotos, o sistema elétrico, a iluminação, tudo.
Como sair desta crise depois de décadas de guerra? Criando o segundo Estado prometido?
O senso comum indica que, em primeiro lugar, a paz é possível. Para que a paz seja possível numa base permanente, tem de se basear na justiça. Como disse João Paulo II, não há paz sem justiça, não há justiça sem reconciliação. O que é urgente agora é acabar com as agressões. É urgente, é necessário para a Palestina, é necessário para Israel. É urgente que todos aqueles que estão ilegalmente privados da sua liberdade, prisioneiros e reféns, sejam libertados.
E agora o que é preciso?
Ajuda: dois milhões e trezentas mil pessoas estão privadas de tudo. É necessário permitir a entrada [de bens essenciais], porque há países que têm camiões parados há muito tempo e não os deixam entrar em Gaza.
Ao mais alto nível político, temos de defender que tanto o povo palestiniano como o povo israelita têm o direito de existir. O povo palestiniano, contando com a Cisjordânia, Jerusalém Oriental e a Faixa de Gaza, é constituído por mais de cinco milhões e meio de pessoas. Há que encontrar uma solução para que possam viver na sua terra, com os seus direitos. A solução dos dois Estados é talvez a mais louvável… Uma das coisas é o reconhecimento do outro, e que se criem as condições para que essas pessoas possam efetivamente viver.
Mas será possível quando Israel ou o Hamas e outros grupos defendem que o “inimigo” não tem direito de existir?
A primeira coisa a fazer é parar a agressão. A primeira coisa é que é absolutamente necessário que haja uma cessação das hostilidades, que isto acabe. Não vai ser fácil depois da guerra. Mas é necessário que haja um tempo para a reconstrução. É tempo de reconstruir e de acalmar as águas e a comunidade internacional tem muito que fazer. A via diplomática tem de chegar.
O Papa telefona-lhe quase todos os dias? O que é que lhe diz?
Sim, sim, todos os dias, às oito da noite aqui. Ele telefona para mostrar a sua proximidade, para ver como estão as pessoas, para nos dar a sua bênção. Sabemos que ele reza e nos faz rezar muito, que trabalha pela paz, tudo o que a Santa Sé pode fazer, e ele na primeira pessoa.
Texto:
António Marujo, jornalista do setemargens.com.
O autor escreve segundo a antiga ortografia.
A entrevista completa pode ser lida em 7Margens.