O movimento rebelde M23 controlava em meados de fevereiro Goma e Bukavu, as capitais do Kivu-Norte e do Kivu-Sul, duas províncias riquíssimas em minerais e que apesar de pertencerem à República Democrática do Congo (RDC) estão 2500 quilómetros distantes de Kinshasa por estrada (1500 por avião) o que significa que tradicionalmente o governo central pouco controla essa região remota. Apoiado pelo Ruanda, e composto sobretudo por combatentes tutsis, o M23 tem um discurso que muitas vezes se assume como libertador das populações do leste da RDC, mas o historial desde a sua criação em 2012 é de violência. E não faltam as acusações de que, mais do que um movimento político, se trata de um grupo criminoso envolvido na exploração e tráfico de coltan, um minério essencial para a indústria dos telemóveis.
Se a conquista em finais de janeiro de Goma, no norte do lago Kivu, envolveu combates com o exército governamental congolês, já a tomada de Bukavu, no sul do lago Kivu, deu-se sem resistência, pois as tropas leais ao governo de Kinshasa retiraram antes da chegada do inimigo. Há relatos de aplausos nas ruas aos homens do M23, o que tanto pode revelar algum tipo de apoio, dada a violência que também tem caracterizado as forças governamentais e milícias aliadas, como simplesmente vontade de agradar aos novos senhores da cidade e evitar mais sangue derramado. Um porta-voz do M23, Lawrence Kanyuka, sabendo das pressões internacionais sobre o Ruanda para deixar de interferir na RDC, fez mesmo declarações a denunciar “as pilhagens e outros abusos” dos soldados governamentais, e também denunciou a presença de soldados do Burundi ao lado dos militares congoleses, exortando-os a retirar para o seu país.
A conquista pelo M23 na primavera de 2024 da mina de Rubaya, de onde é extraído 20 a 30 por cento do coltan a nível mundial, não deixa grande margem de dúvidas sobre a questão económica como motor desta guerra intermitente que há décadas afeta o leste da RDC. Que as exportações ruandesas de coltan (um compósito de colombita e de tantalita) estejam a aumentar a forte ritmo também vem confirmar o apoio do regime de Kigali aos rebeldes. Peritos da ONU calculavam no ano passado que três a quatro mil soldados ruandeses altamente treinados combatiam com o M23.
Também é preciso ter em conta as rivalidades étnicas, exploradas pelos vários beligerantes. O M23 é dominado por tutsis, muitos deles descendentes de refugiados do Ruanda que escaparam ao genocídio de 1994, enquanto entre as milícias que combatem ao lado das forças governamentais congolesas existem hutus, também de famílias de refugiados ruandeses, mas no caso de gente que fugiu com medo de represálias por pertencerem à etnia que promoveu o massacre dos compatriotas. Igualmente é preciso ter em conta o papel do presidente ruandês, Paul Kagame, um tutsi que derrotou o governo hutu genocidário e construiu um dos países mais bem organizados de África, e do presidente congolês, Félix Tshisekedi, eleito em 2018 e reeleito em 2023, que está decidido a expulsar o M23 dos dois Kivus e acusa o Ruanda de “agressão bárbara”.
A chamada região dos Grandes Lagos Africanos tem tudo para ser das mais desenvolvidas do continente, pois além da abundância de água e de peixe, tem terras vulcânicas muito férteis e um clima, dada a altitude, relativamente temperado. Mas a riqueza mineral, sobretudo num momento em que as novas tecnologias e a competição entre as grandes potências como os Estados Unidos e a China acentuam a cobiça global, transformou-se num pesadelo. Nos últimos 30 anos, cerca de seis milhões de pessoas terão morrido em consequência das sucessivas guerras no Leste da RDC. Que o Prémio Nobel da Paz de 2018 tenha sido entregue ao ginecologista congolês e ativista dos direitos humanos Denis Mukwege diz quase tudo. Mukwege, que também é pastor pentescostal, destacou-se por denunciar as violações como arma de guerra e chegou a ser candidato presidencial, mas com fraco resultado.
Numa entrevista em tempos ao jornal Vatican News, o Nobel foi bem explícito na imputação de responsabilidades e no pedido de ação da comunidade internacional: “O Congo está sob ataque, o Congo foi invadido e hoje é ocupado por forças estrangeiras ruandesas associadas aos terroristas M23. O que estamos a pedir à comunidade internacional é que aplique o direito humanitário internacional, que exige que todos os Estados membros da ONU respeitem a soberania e a integridade territorial de outros Estados, isto é a primeira coisa. A segunda coisa é que existem resoluções que proíbem os Estados ou as instituições de fornecer armas aos rebeldes na região dos Grandes Lagos. Hoje, há muitas provas que demonstram muito bem que foram dadas armas ao M23, um movimento que tinha sido derrotado, e se hoje tem armas mais sofisticadas do que as da Monusco, a Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo, significa que essas armas vieram de algum lugar! Pedimos sanções, porque a ONU é capaz de rastrear a origem dessas armas e saber quem é o fornecedor. E os fornecedores devem ser sancionados. Hoje vemos que os países que estão na origem dessas agressões são apoiados, recebem dinheiro da União Europeia. É um escândalo ver que os países que nos atacam têm o apoio da União Europeia. Exigimos que acabem com esta cumplicidade.”
A comunidade internacional, apesar da presença desde há muitos anos de uma força de paz da ONU, tem falhado totalmente naquele recanto da RDC. A agência Ecclesia publicou no início de fevereiro um relato do padre português Marcelo Oliveira, que vive na RDC, em que fala de “autêntico caos”, com “mais de dois mil mortos” e “muitos milhares de feridos”, estando os hospitais da região sobrelotados. Depois, numa entrevista à Ecclesia e à Rádio Renascença, o padre Oliveira, missionário comboniano, denunciou o “grande silêncio” da comunidade internacional perante o “caos” que se vive no país africano, destacou que “a Igreja consegue manter-se presente”, procurando minorar o sofrimento das populações, mas disse estranhar “a passividade da comunidade internacional face a uma crise humanitária com o tamanho desta”. O sacerdote acrescenta que as milícias “não somente atacam as cidades em si, mas atacam os hospitais, mesmo até os campos de refugiados”. Além da Igreja Católica, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados tem procurado apoiar as populações vítimas do conflito, disse ainda o padre português, na citada entrevista.
Existem dois Congos, um mais pequeno que foi colónia francesa, a República do Congo, com capital em Brazzaville, e a RDC, com capital em Kinshasa, antiga Leopoldville. Este último, com mais de dois milhões de quilómetros quadrados, o que faz dele o segundo maior país de África, tem uma história trágica nos últimos 150 anos, pois chegou a ser propriedade privada do rei Leopoldo II da Bélgica, que usava da violência para obter rendimentos. O fim da colonização belga deu-se em 1960, mas o percurso trágico manteve-se, com guerras civis e assassínio de políticos. Rebatizado de Zaire por Mobutu Sese Seko, que governou durante três décadas até ser derrubado em 1997 por uma rebelião nascida nos Grandes Lagos e incentivada pelo Ruanda, o país voltou a chamar-se Congo quando Laurent Kabila assumiu o poder, sendo depois sucedido pelo filho Joseph, presidente até 2018. Os Kabilas viraram-se contra os antigos aliados ruandeses, que veem a RDC como uma fonte de riquezas, e também o sucessor Tshisekedi, filho de um opositor a Mobutu, cedo percebeu que o maior desafio da sua presidência seria pacificar os dois Kivu e resolver a situação de quatro milhões de pessoas que ali são deslocados internos (seis milhões em todo o país).
Em janeiro de 2023, o Papa Francisco visitou a RDC, um país com mais de 100 milhões de habitantes, pelo menos metade deles católicos. E foi rodeado de multidões em Kinshasa que apelou à paz no país. Antes de viajar tinha recebido no Vaticano Mukwege, que informou o Papa de quão terrível que continuava a situação nos Grandes Lagos Africanos. Por razões de segurança, Francisco não viajou até aos Kivu. Agora, voltou a rezar pela paz na região, preocupado com relatos do bispo Willy Ngumbi Ngengele da destruição de hospitais em Goma. Uma esperança de mediação no conflito pode vir do presidente angolano João Lourenço, que em fevereiro assumiu a presidência rotativa da União Africana. Lourenço já tem experiência como mediador entre Kinshasa e Kigali e deplorou a tomada de Goma pelo M23, além de ter exigido a retirada dos ruandeses da RDC.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN