Controverso e afável, Valeriano Paitoni dedica a sua vida, há cerca de 30 anos, aos doentes infectados pelo ví­rus da sida
Controverso e afável, Valeriano Paitoni dedica a sua vida, há cerca de 30 anos, aos doentes infectados pelo ví­rus da sidaacima de tudo, sou missionário da Consolata que tenta viver a dimensão da consolação do nosso carisma, identifica este lutador de origem italiana de 63 anos, que trava um combate renhido contra os preconceitos sociais. No Brasil desde 1978.

Os melhores anos da minha vida missionária passei-os na paróquia de Nossa Senhora de Fátima, em Imirim, São Paulo. anos abençoados em que aprendi a ser mais homem, mais cristão e mais missionário da Consolata. Foram igualmente anos de muitas dificuldades, sobretudo muitos preconceitos, até mesmo contra nós que trabalhávamos com estes doentes.

Muito criticado, lembra um colega que lhe atirou: Tu não devias ser missionário da Consolata; deverias ter sido camiliano. É a partir desse momento que Valeriano Paitoni lança a sua cruzada: a sida não é apenas uma doença; é sobretudo uma questão social, que tem de ser enfrentada também através da fé cristã. Na favela, começaram a aparecer casos de jovens que eram jogados fora pela família, rejeitados pelos amigos e pela sociedade: a sida é peste; a sida mata. as primeiras campanhas de publicidade tiveram como efeito aumentar ainda mais os preconceitos. a família sentia-se mal: o meu filho é homossexual e contraiu a sida. Era a vergonha da família. a maioria dos infectados perdia tudo: a casa e, sobretudo, a dignidade.

Fátima Missionária (FM): Como é que pensou enfrentar esta calamidade?

Valeriano Paitoni (VP): Naquele tempo, tínhamos uma casa que estava desocupada.comecei a recolher aí jovens e adultos que viviam na rua. Desde o começo, entendi que se tratava de uma situação missionária, na linha do nosso carisma. Foi nos anos 80, quando apareceu a pandemia no Brasil. O problema da sida não era apenas uma doença, mas um verdadeiro problema social: de rejei­ção, de exclusão, de verdadeiro sofrimento. O nosso carisma de consolação tinha de prevalecer.como missionário da Consolata, não podia ficar de braços cruzados. Reuni alguns voluntários e começámos a acolher os doentes.

O passo seguinte foi brigar com as autoridades, pelos direitos destes pacientes. a maioria dos hospitais não os aceitava. Iam parar ao hospital de doenças infecciosas, Emílio Ribas. Em pouco tempo ­ficou superlotado. Permaneciam abandonados nos corredores cheios de camas e macas, e de colchões no chão. Entretanto surgiram outros grupos e começámos a reunir-nos para exigir um tratamento digno e humano para estes doentes.

FM: Iniciado o movimento de apoio, era necessário dar outros passos?

VP: Passámos, em seguida ao trabalho de prevenção: ir às escolas, aos grupos de jovens das paróquias. Foi um trabalho louco, a correr de um lado para o outro, para chegar ao maior número possível. as escolas começaram a perceber a necessidade de esclarecimento. No começo era terrível. Pensava-se que a sida se transmitia com uma picada de insecto, que era arriscado jantar ou conviver com um paciente. Para derrubar estas barreiras e preconceitos, começámos um traba­lho enorme, de formiguinha, de escola em escola, a esclarecer os jovens.

Quando me nomearam administrador do Instituto da Consolata, aceitei o encar­­go com a condição de me deixarem continuar o trabalho pastoral que vinha fazendo. Então interroguei-me: Porque é que não abrimos uma casa? Nasceu assim o Lar Betânia, para adultos, que ainda hoje está a funcionar.

FM: Como é que começou o trabalho com as crianças infectadas?

VP: Quando, mais tarde, fui para a pa­róquia de Nossa Senhora de Fátima, Imirim, começaram a aparecer crianças infectadas em linha vertical, isto é, de mãe para filho. Os médicos que já conheciam o nosso trabalho, suplicaram que abríssemos uma casa para crianças. Não sabiam e não tinham onde as colocar. Fiz uma proposta ao conselho pastoral e, depois de muita reflexão, votaram a favor da abertura da Casa Siloé. Seguiram-se o Lar Suzana e a Vila Vitória. Esta acolhe jovens com 18 anos, que não tiveram a sorte de serem adoptados ou ter um tio que os recebesse. É a última etapa para que esses jovens possam ingressar na vida activa da sociedade.

FM: Qual é o método de trabalho para lidar com os utentes das vossas casas?

VP: Sempre pensei, desde o início, numa casa inspirada pelo espírito de família, que o nosso fundador, beato José allamano, nos deu. Não pode ser um depósito de doentes que estão à espera de morrer, mas a casa familiar que eles perderam. as nossas são casas de família, não têm nada dos antigos orfanatos ou hospitais. Em cada casa, não temos mais de 12 crianças, para podermos acompanhar cada uma individualmente, como pessoa e não como um simples número. Procuramos que vivam em família: meninos, meninas, crianças de poucos meses, adolescentes e os mais crescidos, como acontece nas famílias normais. Estão inseridas na escola pública, têm a liberdade de sair, de fazer amizades, festas com colegas da escola em casa deles ou em nossa casa. Vivem inseridos na comunidade paroquial como qualquer outra criança. Esta prática desenvolveu amizades e fez cair muitos preconceitos. Esta grande característica tornou as nossas casas uma referência não apenas nacional, mas também internacional.

FM: Depois dos preconceitos, que outras dificuldades encontram?

VP: Hoje os preconceitos são muito mais velados. Existem ainda muitos. as nossas crianças hoje estão a enfrentar a questão da afectividade e da sexualidade.começam os namoricos e as primeiras rejeições. Surge o grande conflito: Padre, vou dizer que sou portador do vírus?. Respondo com clareza: Não tens o dever de falar para ninguém. Porém, quando começares um relacionamento afectivo, é bom falar da tua situação. Não escondas. Se a relação afectiva cresce, vira namoro e se passam a amar-se de verdade, o choque vai ser ainda maior. Orientamos os nossos adolescentes: Escolham o momento oportuno para falar que são portadores do vírus. É claro que nem sempre a pessoa entende.

Tivemos um caso muito bonito. Quando a nossa primeira menina se apaixonou por um colega da escola, que não era portador do vírus, disse-lhe que queria conhecer o seu namorado. Filho único, de descendência alemã, um rapaz bonito, falei com ele: Você está consciente da situação?. E ele respondeu-me: Sim, ela já me falou e eu sei como nos devemos proteger, sei o risco que posso correr, mas nós queremo-nos bem, amamo-nos. Perguntei-lhe: Os teus pais sabem?. Já falei com o meu pai e ele quer falar consigo. Nem consegui dormir bem nessa noite. O que é que lhe vou dizer? O pai veio e disse-me: O senhor deve estar preocupado; não se inquiete. Sei o risco que o meu filho está a correr. Já falei com ele: se este amor é verdadeiro, nós não temos nada a opor.
Este facto tem o significado de uma grande vitória. Percebemos que o nosso esforço para inserir estas crianças na comunidade, a todos os níveis, está a produzir frutos, derrubando barreiras. É o problema maior que as nossas crianças têm de enfrentar.

FM: Hoje, os medicamentos já controlam o vírus. Quais os novos desafios?
VP: Quem faz o tratamento como deve ser, pode viver uma vida normal. Os médicos afirmam que pode chegar à idade adulta de 40 ou 50 anos. Evidentemente que têm de tomar os medicamentos todos os dias. O vírus já não é o problema maior, mas os efeitos colaterais destes remédios. São eles que fazem aumentar muito o colesterol, os triglicémios, podendo provocar derrames cerebrais ou outros problemas.
a grande dificuldade para os portadores do HIV é serem acolhidos no mundo do trabalho. De três em três meses têm uma consulta, por vezes apanham uma constipação e têm de correr para o médico para ver se há risco de pneumonia ou outras doenças. É claro que o empregador destes jovens fica preocupado.
Há ainda os problemas de acolhimento nas próprias famílias. Estamos atentos às relações com os pais ou familiares e temos tido algum sucesso. Mas é difícil convencê-los a reassumir o jovem ou a criança no seio da própria família. É uma das grandes lutas que estamos a travar: convencer as famílias que o jovem tem uma vida praticamente normal, que pode conviver com todos.

FM: Como é que a sociedade e a Igreja olham para este missão?
VP: actualmente a Igreja no Brasil admira quem se dedica a este trabalho. É significativo que grande parte da assistência aos portadores de HIV está nas mãos da nossa Igreja. Está na primeira linha. Eis porque o governo quer estar de bem com a Igreja. Sabe muito bem o trabalho que ela desenvolve não tanto na prevenção, mas sobretudo na assistência a estes doentes.
Pessoalmente penso que a Igreja no Brasil peca ainda no campo da prevenção, devido à questão do preservativo. Um dia, gostaria de fazer um inquérito para saber quem é que fala mais dos valores evangélicos que favorecem a prevenção: como a fidelidade, a castidade e assim por diante. Não sei se haverá na cidade de São Paulo um padre que fale tanto destes valores quanto eu. Há quem me condene por ser a favor do preservativo.
Quando dou uma palestra, coloco em primeiro lugar os valores evangélicos, mas não posso não falar do que a Organização Mundial de Saúde (OMS) me apresenta para enfrentar esta pandemia, que é o uso do preservativo. Não é que esteja a propagandear o seu uso, para favorecer uma vida sexual desregulada. Logo de entrada, apresento os valores evangélicos e, em seguida, sinto o dever, como cidadão, de informar o que diz a OMS sobre os métodos mais apropriados para travar a pandemia da sida. afirmo sempre que a consciência é de cada um que me ouve. Refiro sempre este exemplo. Quando alguém vem ter comigo para se confessar e declara que traiu a esposa, pergunto sempre: Você usou o preservativo? Se não o usou, cometeu dois pecados: da infidelidade e correu o risco grave de levar para dentro de sua casa uma doença que ainda não tem cura. Neste caso, o uso do preservativo é uma bênção. Pelo menos, não leva para dentro de casa um mal maior.

FM: Esta pandemia está cada vez mais controlada. até quando este trabalho?
VP: actualmente mudou o perfil do doen­te do HIV. Quando aparecer uma cura definitiva, estas obras provavelmente já não serão precisas. Mas esta meta ainda está muito longe. Quando abrimos a primeira casa, acolhemos crianças recém-nascidas. Então os médicos diziam-nos que uma criança que nascia infectada com o vírus, poderia chegar aos seis ou sete anos, quando bem cuidada. apareceu então o cocktail que conseguiu prolongar a vida das crianças infectadas. Hoje, há novos medicamentos que prolongam a sua vida até aos 40 ou 50 anos. Evidentemente que tivemos que adaptar o nosso trabalho com estas crianças às novas realidades. Não sabemos o que nos reserva o futuro. Temos de aprender a viver de acordo com o progresso da ciência e de acordo com a situação que o país irá enfrentar.
O apoio ao problema do HIV é mais necessário hoje do que no passado. Os adultos estão a enfrentar o grave problema da ineficácia do cocktail, com a consequência de não conseguirem emprego. as nossas crianças enfrentam a problemática da afectividade. além disso, temos mais pedidos de adolescentes, entre os 13 e 15 anos, que procuram as nossas casas de apoio, do que recém-nascidos. Muitos deles ficaram com os familiares e não puderam beneficiar dos cuidados que os nossos têm, quando chegam aos 13 e mais anos, já não dispõem de nenhum cocktail que lhes valha. Os últimos óbitos registados nas nossas casas foram destes adolescentes. Chegaram às nossas mãos de tal forma debilitados que já não havia meio de os recuperar. Em geral, vêm de famílias que não têm as condições mínimas para cuidar delas próprias, muito menos dos próprios filhos infectados. Mais uma vez estamos perante uma questão social, de recuperar a dignidade humana.como dizia o beato José allamano, nosso Fundador, é preciso primeiro fazê-los homens e depois cristãos. É claro que os dois aspectos são, naturalmente, inseparáveis.