a porta da cela fechou-se com estrondo metálico a ecoar no corredor frio. Daniel estendeu-se na cama, silencioso
a porta da cela fechou-se com estrondo metálico a ecoar no corredor frio. Daniel estendeu-se na cama, silenciosoOs companheiros de camarata esperavam a sua chegada animada como sempre depois de uma visita, com os cheirinhos da liberdade aconchegados no saco e que ele punha à disposição de todos: cigarros e gulodices. – Que te mordeu, Dany? algum problema?- Não me apetece falar. Pode ser?Daniel tirou então um livro de dentro do blusão e começou a ler. Os colegas espreitaram curiosos: O Regresso do Filho Pródigo era o título do livro. – Ei, Dany, estás a virar padre? – a gargalhada geral mostrou como aquele tipo de leitura contrariava o estilo habitual das revistas que partilhavam na cela. Daniel ignorou os comentários. Também ele reagiria assim, com certeza. Estava confuso. aquele senhor desconhecido, idoso e de olhar sereno, viera ali para o visitar e deixar um recado em forma de livro: – Daniel, você não me conhece, mas pediram-me para vir cá trazer-lhe uma mensagem. Por favor leia-a toda. – Dito isto, o senhor desconhecido pegou nas mãos de Daniel, acariciou-as, colocou-as sobre um envelope que trouxera, olhou-o ternamente e saiu. Quando Daniel entrou na cela ainda estava em choque. Teve pressa em conhecer a mensagem. Quanto mais lia, mais preso à leitura ficava. Via ali descrita a sua vida, sentimentos, opções, a carga de culpas e de zangas que ele tão bem alimentava, o desespero de não poder voltar atrás, a carreira perdida e confianças que traíra, a esperança no perdão, no recomeço da vida. Daniel terminou o livro. Relembrou a existência de um Deus misericordioso e acreditou que Ele ainda existia para si e até atuava em si. Os dias passaram a ter outra cor. Tentou explicar aos colegas de cela o conteúdo do livro. Desistiu. Então, decidiu fazer uso da misericórdia que descobrira em si. – Malta, preciso de ajuda para um plano a propor cá dentro. Quem alinha?Foi assim que começou um projeto que deu origem à biblioteca daquele estabelecimento prisional. Num ano obtiveram a aprovação do diretor, motivaram colegas reclusos, estabeleceram contacto com bibliotecas, pediram doações, fizeram readaptação de espaço, construíram prateleiras, mesas, bancos, organizaram arquivo e funcionamento. Criaram a hora da leitura falada em que alguém lia alto para os presentes que não liam facilmente. Era o orgulho de todos quantos foram chamados a contribuir. O livro O Regresso do Filho Pródigo foi colocado em lugar de destaque, como troféu construtor. Hoje a biblioteca organiza já a videoteca e realiza palestras a partir do protocolo que o estabelecimento prisional assinou com várias entidades da área da formação e da cultura. Por tudo isto, Daniel e os colegas do projeto, apesar de cumprirem ainda pena de prisão, sentem-se homens livres, mostrando que cada pessoa, por mais perdida que se encontre, por mais centrada em si que esteja, tem dentro de si um apelo e uma condição que o liberta: de um Deus misericordioso, onde o amor é lei. Num domingo, quando a biblioteca foi notícia na imprensa local, um senhor de cabelos grisalhos e olhar sereno lia o diário e agradecia comovido o poder de uma mensagem e de um ato de amor.