Nunca estivemos no mesmo barco e como tal, nunca o desfecho, no início da pandemia, se poderia alguma vez afigurar igual para todos, ou que tudo iria ficar bem. A esperança pela qual a ideia de justiça se faz conhecer e ouvir, ainda que sem corpo, é certamente o que tem prevenido, entre cada nascer e por do sol, o afogamento da humanidade, mantendo-a à tona da água. Mas é também o que a tem impedido de agir, sobretudo quando diante de sérios problemas e da necessidade urgente de se resolverem, se acredita que, por se estar em boas mãos, nada há a temer e que tudo irá ficar bem. A tranquila, por vezes indiferente-passiva reação de uma vasta população às alterações climáticas in place, e a outras imparáveis, tem, na esperança que nutre, a razão da sua confiante inércia, sendo a mesma o argumento por detrás da convicção de que a justiça acontecerá independentemente de nós.
“Vou até ao Algarve”. O que talvez ainda não tenha sido tocado, intervencionado pelo ser humano, nesta época dita “Anthropocene”, poderá não ter nada de virtuoso. A contingência não parece justa. Mesmo assim, é frequente ouvir-se dizer, numa apreciação pontual ou mesmo generalizada do agir humano, que nem os animais da selva se comportam assim, o que significa que a ordem conseguida pelos Estados modernos pode até revelar-se, no final, ainda mais cruel que o “caos” que constitui e habita lá fora os lugares mais inimagináveis. Ao tentar compensar pelas assimetrias inscritas na realidade em si, no acaso, o Direito ergue-se, pretensioso, como rosto de uma certa ideia de justiça, e é esse o propósito: o de parecer justo pelo fazer da justiça. E será compreensível, talvez adequado que, neste quadro, a resposta à pergunta: o que seria de vida fora do Direito, seja a de uma posição em sua defesa. Mas hoje, apesar do enorme passo que foi, em 1948, a Declaração Universal de Direitos Fundamentais, o Direito, e com ele a própria Declaração, é expressão de uma luta que nunca terá fim à vista entre os mais invisíveis e ambíguos interesses.
“Vou até ao Algarve”. Certo. Uns irão, outros não. Mas a questão aqui não é o Algarve ou outro destino qualquer de férias para carteiras mais abonadas – ainda que, no regresso ao trabalho, e em conversa com colegas, haja quem se sinta parte de um estatuto maior, ao partilhar que não passou as férias em casa. A questão é a do caminho, a da sua oportunidade ou preço, para que em momentos da vida uns possam decidir e ir, e outros se vejam simplesmente obrigados, forçados a estar e a não poderem decidir e partir. Independentemente do que até possa ter resultado do esforço e mérito de alguém, a distância que geralmente separa uns de outros, numa fronteira acima ou abaixo da dignidade de qualquer vida, ou é fruto do acaso, de horas e locais certos ou errados, ou de um arranjo premeditado e bem-sucedido. Nada existe de inocente. Se uns vão hoje até ao Algarve e outros não, mesmo que o motivo faça referência ao mérito de um caminho percorrido, a fundamental razão está no favorecimento ou não de ventos de múltiplas nortadas, bem para lá da qualidade, do mérito ou demérito das velas e da embarcação de cada um.
Confrontados com crescentes níveis de desigualdade, de ignorância, de exclusão, de pobreza ambiental e humana, não servirá de todo, como resposta, a esperança que remete para uma conservadora e excluidora gestão dos afazeres de cada um, e que aguarda, piamente, que a justiça aconteça por si mesma. Por sua vez, o Direito não conseguirá ser mais que um mal menor, frio, calculista, estéril. Mas também não será pela ética do dever ou da virtude, narcisicamente cultivada por atletas da perfeição, que os pobres vão deixar de ser pobres, até porque estes vão ter de continuar a existir para justificar a beleza e grandiosidade da esmola.
Estamos longe, ainda muito longe de uma espécie de “iluminação global”, para lá do Direito da Esperança e da Ética. Não saberia como chamá-la, mas sei apenas que é por essa lucidez que alguns, já hoje, podendo decidir e partir, não o fazem, até que, pelo abraço que vão dando a um corajoso e contracorrente estilo de vida, outros o possam também fazer.