A comunidade Ka Ubanoko, formada por 850 migrantes venezuelanos, indígenas das etnias warao, pemon, eñepa e kariña, e por alguns não indígenas, recebeu uma ordem de despejo, determinada pela Força Tarefa do Exército brasileiro, coordenadora da Operação Acolhida, mas que não conta com a aprovação das entidades que fazem parte da campanha de acolhimento, na cidade de Boa Vista, no norte do Brasil. A justificação apresentada pelas autoridades é que o Clube dos Servidores, dono do terreno no “antigo Clube do Trabalhador”, quer reabilitar o local para atender jovens e adolescentes.
Conhecer para compreender
Era o início do mês de março de 2019 quando mais de 600 venezuelanos, entre os quais 350 indígenas das etnias warao e eñepa, e 250 não-indígenas ocuparam o espaço. Todos estavam fora dos abrigos, muitos nas ruas e praças, outros à sombra de cajueiros no bairro Pintolândia. Os Missionários da Consolata, através da Equipa Itinerante, acompanharam o grupo desde o início e, juntamente com a diocese de Roraima, instituições e organizações não governamentais (ONG), vêm dando apoio à comunidade.
Odisseia warao
Os moradores do Ka Ubanoko tinham até 28 de outubro para desocupar o local. A única alternativa oferecida aos indígenas é um novo Abrigo em Jardim Floresta. Para os não indígenas, existe a possibilidade de interiorização em outros estados, ir para abrigos ou assumir um aluguer. A ordem apanhou de surpresa a comunidade inter-étnica que tem uma história de lutas e vem mostrando capacidades de organização e autodeterminação na gestão do espaço utilizado por indígenas não-indígenas. Eles se recusam deixar o espaço sem uma consulta livre e escreveram uma carta explicando os motivos. Pedem diálogo e solicitam a permanência, ainda que temporária, no local, por entender que “o contexto de pandemia não é apropriado para um deslocamento em massa”.
Forçados a fugir
Estamos diante de migrantes e refugiados, mas também de povos indígenas que se consideram deslocados internos, sempre “em fuga”. As lideranças não aceitam a decisão arbitrária. “Temos uma organização segundo os nossos usos e costumes com a presença dos caciques. Como povo indígena temos direito a uma consulta livre, prévia e informada”, explica Leany Torres Moraleda, liderança warao da comunidade. “Nós somos povos indígenas conscientes da nossa realidade. Eles pensam que podem decidir por nós só por que somos indígenas migrantes. Nós conhecemos a nossa história. Não somos migrantes, somos da América toda. Foram os colonizadores que nos forçaram a fugir para outros espaços, mas agora estamos regressando. Quando decidem por nós, estão violando nossos direitos de sermos protagonistas”, complementa Leany.
Direitos indígenas
A Lei da Migração 13.445 (24 de maio 2017) garante aos migrantes igualdade de tratamento e oportunidades; inclusão social, laboral e produtiva; acesso igual e gratuito a serviços sociais (art. 3º, IX-XI). Além disso, aos povos indígenas, a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada no Brasil em 19 de abril de 2004, estabelece plenos direitos à participação e a uma consulta prévia.
Com base nesses direitos, as lideranças do Ka Ubanoko estão a organizar-se para recorrer ao Ministério Público Federal (MPF) e à Defensoria Pública Federal (DPF). Enquanto isso, seguem as tentativas de diálogo com o apoio das organizações e da diocese de Roraima.
Yidri Torrealba, representa as 160 famílias de venezuelanos no Ka Ubanoko. “Recuperamos esse local e já é reconhecido pelos vizinhos do bairro. Aprendemos a viver em comunidade implementando a educação diferenciada para as crianças já que mais de 50 por cento não consegue vagas nas escolas. Preparamos a nossa alimentação com a ajuda de ONG’s, somos pessoas profissionais que trabalhamos. Juntos conseguimos superar tantos obstáculos. Queremos que nossa voz seja ouvida”, desabafa.
Os moradores da comunidade saem às ruas para conseguir o sustento, recolher latas, ferros para vender, limpar vidros de carros, vender diversos produtos. Alguns têm os seus próprios empreendimentos como fabricação de sandálias, reciclagem, vendas de verduras, corte de cabelo, manicure, artesanato, vendas de comida rápida dentro e fora da comunidade.
Abrigo não é a solução
Os indígenas afirmam que muitos deles não vão se adaptar a um abrigo e terminarão nas ruas causando mais problemas. A proposta de interiorização, também não agrada. Deirys Ramos, da etnia eñepa diz sentir-se ofendida. “Conheço os meus direitos e sei o que é uma consulta prévia. Sinto-me triste e enganada pelas instituições que dizem defender os indígenas e venezuelanos”. Para ela, o Abrigo Jardim Floresta não é a solução. “Não tem árvores, não tem brisa e estaremos fechados todo o dia. Faz calor, não tem privacidade. Um ser humano não merece viver num lugar assim. Não teremos nem o direito de escolher o que vamos comer. Acham que vamos nos contentar com um pouco de artesanato sem ter um trabalho digno? Lá não asseguram a educação bilíngue das crianças”, ressalta.
Apesar das dificuldades, é consenso entre as lideranças que o Ka Ubanoko é bem melhor que um abrigo, pois todos se sentem livres para tomar decisões, organizar a vida com normas que são assumidas, respeitadas e vividas por todos. Eles têm recebido apoio de ONG’s, e mesmo numa vida precária, consideram um bom lugar para reiniciar a vida no Brasil segundo os quatro verbos propostos pelo Papa Francisco: “Acolher, proteger, promover e integrar”.
Atenção especial
Em Boa Vista, existe o abrigo Pintolândia que é destinado aos indígenas e coordenado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), com gestão da Fraternidade Internacional (FFHI). Hoje, conta com 538 indígenas. Segundo Relatório de Atividades para Populações Indígenas do ACNUR, dos cinco mil refugiados e migrantes indígenas venezuelanos registados em território brasileiro desde 2018, 65 por cento são requerentes de asilo. A maior parte está na região norte. No entanto, muitos deles já se encontram em 17 diferentes estados do Brasil. Em relação ao povo warao, em Roraima são cerca de 1,3 mil indígenas. No Pará são mais de 900 e no Amazonas 600. Embora tenham vindo do país vizinho, esses dados mostram o grande fluxo de indígenas deslocados internos. Estes são ainda mais vulneráveis, enfrentando dificuldades para o acesso à documentação, moradia, saneamento básico, meios de subsistência, entre outros.
Texto: Jaime C. Patias