Lugares, onde os mais hediondos massacres ocorreram, são hoje chãos sagrados. Não diria que o sagrado nasça da violência, que necessite dela para se poder pensar, manifestar, mas que existe uma real ligação entre ambos, ainda que paradoxal.
Hoje, as valas comuns deixadas pela ocupação russa na Ucrânia, os campos de concentração de Auschwitz não são apenas expressão do mal mais impensável, mas manifestação do mais silencioso dos gritos, e por isso o sagrado a preservar como memória viva do que não se devia jamais repetir. E o mesmo se poderá dizer de tantos outros sítios penetrados pela mais sórdida brutalidade humana, do que, depois dos atentados de 11 de setembro, é hoje, por exemplo, “Ground Zero”.
Mas terá o sagrado de um mal perpetrado sido capaz de demover os humanos da sua repetição? Terá a cruz cristã sido eficaz, neste processo, ao longo dos séculos? Ou terá sido mais o medo, o receio do que uns pudessem usar contra outros, o que foi travando ou desencadeando novas agressões? O que fará, no final, com que nos aproximemos ou distanciemos do nosso próprio extermínio? Será a nossa sacralização ou dessacralização, enquanto criações, atos do nosso próprio pensar?
Usada sobre Hiroxima e Nagasaki, a bomba atómica, que como qualquer arma, não deveria existir (pois defendo a desmilitarização do mundo), permanece, porventura, entre nós, como “marca do sagrado” (Jean- Pierre Dupuy, “La marque du sacré”), ao relembrar continuamente os humanos de um caminho de mútuo extermínio que não se deve de todo iniciar. Difícil de imaginar o que seria da guerra na Ucrânia, se a bomba atómica não existisse, mas se sobretudo não estivesse à disposição de países que se odeiam.
A ameaça de uma terceira guerra mundial têm-se ouvido em conversas entre algumas das figuras implicadas neste conflito, e julgo ser verdade que, se não fosse pelo mal que esta bomba representa, talvez a guerra já tivesse ganho outras proporções ou até talvez nunca tivesse começado.
O lugar e a importância que o “poder” tem entre nós, a todos os níveis, passando pelo domínio de uns sobre outros, explicam o que poderíamos chamar de “dessacralização do mundo”. No fundo, o que rege as nossa relações não é a sacralidade de tudo quanto existe, enquanto gratuidade, ser sem razão, mas a sua “utilidade”. Se assim não fosse, a “defesa de uns contra outros”, tal como a Rússia justifica a sua “operação especial” na Ucrânia, nunca se faria pela força das armas ao serviço de um “poder oligarca”, mas pela via da diplomacia, do diálogo e da cooperação.
Em grande medida, a bomba atómica continua a ser o travão que impede o descarrilar do atual conflito militar. Para além do medo real, pesa também certamente o sagrado que a envolve. Mas esvaziado o nosso dia-a-dia desta sacralidade milenar, e esvaziado todo o mal cometido da singularidade do planeta que habitamos, nem a bomba atómica nos poderá salvar, porque tudo terá deixado de valer a pena.
No final, é o próprio pensamento que morre, o que porventura sempre distinguiu a nossa espécie de todas as outras, e com ele, tudo o que seu exercício construiu até agora de verdadeiramente único, sagrado e sublime.