À imagem do que o artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa consagra como princípio fundamental, também o valor das pensões e dos salários devia ser igualmente adequado, e garantir, a quem reside em Portugal, condições razoáveis de bem-estar.
É verdadeiramente criminosa, violadora da dignidade humana esta perversa fábrica do lucro, que gera, não só desigualdades abissais entre uns e outros, como a mais desumana miséria, ao humilhar, no atual contexto, milhares de pessoas, que vivem entre o que possa conter o caixote do lixo, e os bens em fim de vida, como frutas e legumes, vendidos por migrantes asiáticos, em Portugal.
É verdade, compreensível até, que ninguém possa distribuir equitativamente a riqueza que não tem ou que não conseguiu produzir, mas é precisamente nestas situações que o “todo” é eticamente chamado a compensar pelos desequilíbrios ou pelas carências, onde quer que estas existam ou se façam sentir. Por isso, sendo contrário à humanidade a que aspiramos, é de todo inadmissível, vergonhoso que alguém se chegue à frente para falar de lucros milionários, quando mais de metade da população em Portugal está numa real situação de pobreza.
Durante os dois anos de pandemia houve quem perdesse o emprego, quem se visse forçado a dar por encerrado o seu negócio. Hoje, para além de todos estes, é uma generalizada “classe de remediados”, que mesmo que não tenha perdido o trabalho ou a empresa que gere, se vê de joelhos e a perder o chão, debaixo de si, dia após dia. O dinheiro não evaporou, os alimentos não rareiam, nas cadeias que os produzem e comercializam, mas estes são hoje cada vez mais inacessíveis a quem viveu uma vida de árduo trabalho, e a quem se ergue todos os dias, para se poder manter vivo, a si e à sua família.
Quando será que os bancos, e, com eles, as mais variadas indústrias, farão um bom uso do “privado” com que se definem e defendem, para anunciarem, em conferência de imprensa, que os ganhos (não os roubos), se traduzem em ajudas a milhares de pessoas em dificuldade? E não estará numa maior circularidade da riqueza, mais conseguida por uns do que por outros, mas igualmente partilhada, a diminuição dos nossos níveis de pobreza e desigualdade? Não terá o estômago de cada um, direito a uma refeição, que seja ao mesmo tempo suficiente e de qualidade? Será porventura missão dos graus académicos de uns, e a pouca escolaridade de outros, razão para que uns sejam bem e outros mal pagos? Não terá o coveiro, o varredor de ruas um corpo para cuidar, como pessoas com outras ocupações ou profissões? Numa apreciação de remunerações, não devia alguém, que recebe o “impensável”, seja muito ou pouco, sentir desconforto e vergonha, precisamente por ser insuficiente ou exagerado?
Embebido ou não do cristianismo que lhe está na origem, o Natal, no seu frenesim, e nas luzes coloridas, que iluminam de um “brilho mágico” as ruas das nossas terras, continua a trazer ao de cima, todos os anos, o que o ser humano tem vindo a valorizar ao longo dos séculos. Mas a verdade é que milhares de pessoas, um pouco por todo o lado, continuam a ter por berço, uma manjedoura, e por casa, um curral.
Utopia? Uma impossibilidade? Mero sonho? Politicamente irrealizável? Esta não é certamente uma leitura promotora da “parasitagem”, de uma absurda ideia que pudesse ter por propósito defender, que, quem vive do seu trabalho, deve ser solidário com os “mandriões”. Absolutamente. O direito a uma casa e a um rendimento adequado pressupõem, antes de mais, o dever de cuidar. “Cuidar de si” e “cuidar de tudo” o que existe à nossa volta é, acima de tudo, dever-responsabilidade de cada um. E neste sentido, num Estado de Direito, é tarefa das instituições garantir que todos os cidadãos são capazes de reciprocamente cuidar de si e dos outros. A adequação da casa e a suficiência dos rendimentos nascem deste cuidado, deste esforço individual e coletivo, que sendo “dever”, também é “direito” de todos.
É lamentável, que o que não podemos repetir ou continuar a ser, em momentos de crise, se retomem, assim que a borrasca amaine ou desapareça. Mas esta a “pedrada” neste charco de total injustiça e desumanidade, de que todos frequentemente se queixam, mas sem que sobre ele se mova uma única palha, que significasse um virar de página. E nesta escrita, a distância que continua a separar-nos de milhares de anos futuros, que hão-de chegar e ser presente, e onde o mundo será corajosa e radicalmente diferente do que conhecemos hoje.