Foi-me pedido um texto com o meu testemunho, mas honestamente, não me sinto testemunho para ninguém! Pelos mais variados motivos: sou um miúdo de 25 anos, não tenho mais de 50 anos de vida, não vivi muito, nem vivi experiências assim tão diferentes ou relevantes que me permitam dar testemunho sobre algo. Não nasci no tempo em que se ouvia jazz ou blues nos bares e nas ruas, e não acho que tenha mais maturidade que a minha sobrinha de três anos (ainda para mais sendo a miúda tão inteligente como é!). Apenas sobrevivi a uma doença. Não desisti e, aparentemente, estou cá para contar a história. Se acho relevante? Não posso ser hipócrita e dizer que não, afinal de contas é o que me permite estar aqui a escrever este texto de cerca de 4.000 caracteres (com espaços incluídos!).
Para quem me conhece, sabe que sou um tipo bastante positivo. Sempre gostei de desporto, música, arte em geral, festas, jantaradas (com o vinho da sacristia a saciar a malta!) e sempre adorei altas parvoíces com os meus amigos. Licenciei-me na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, e não perdia uma boa saída à noite com o meu pessoal da faculdade.
Vivo para a música desde que me lembro, a minha mãe – já se sabe como são as mães – disse-me que antes de falar já cantava! E acredito, pela forma como esta expressão sonora está tão entranhada em mim. Todos os episódios da minha vida têm uma música a acompanhar, quase como se se tratasse de uma banda sonora de um filme bem cotado pela crítica. Lembro-me de levar os meus tios ao aeroporto Humberto Delgado antes de partirem para missão, lembro-me de lá haver uma guitarra e de se cantarem cânticos lindíssimos, lembro-me da música que ouvi na minha primeira memória de vida (era uma caixinha de música com um cavalinho da Chicco), lembro-me de andar nos escuteiros e das músicas que se cantavam lá, ou da primeira vez que fui a Taizé e ouvi uma música que me arrepiou dos pés à cabeça.
No entanto, acho que não tive nenhuma música na minha cabeça quando fui diagnosticado com uma leucemia em setembro de 2022. Lembro-me de sentir um vazio, um silêncio, alguma revolta, muita confusão dentro de mim e muitas questões. Porquê? Porquê eu? Porquê agora? Porquê tão novo? Sempre tive um gostinho por ajudar os outros, sempre fui presença assídua nos banquinhos da igreja, sempre fiz voluntariado, tenho um estilo de vida relativamente saudável, sou um miúdo dedicado às minhas coisas e à minha vida.
Porquê uma leucemia e não uma unha encravada? Ninguém me soube responder a isto, acho que nem eu sei, nem sei se algum dia vou saber! Acho que a vida é mesmo isto, viver um dia de cada vez, sem saber o porquê de tantas coisas, mas viver. Podia-me ter enchido de revolta… Mas viver uma vida de revolta parece-me um contrassenso. Podia viver uma vida à procura da resposta, mas acho que me tiraria o foco da meta. Podia viver uma vida desanimado, mas penso que me tiraria forças para o desafio que tinha em mãos.
Meti o meu melhor sorriso, fiz-me acompanhar da minha guitarra, rodeei-me de boas energias e de pessoas cheias de luz, decidi encarar o ‘touro’, sabendo que ele só precisava de uma hipótese para que as coisas não corressem muito bem para mim, e quando dei por mim não havia ‘touro’, nem arena, nem medo, nem revolta. Continuavam a haver questões: porquê? Mas não existia mais nada.
Logo nos primeiros tempos do diagnóstico, fiz uma oração com a minha família e lembro-me perfeitamente da leitura. Quando Moisés levantava os braços, eram os israelitas que ganhavam, quando baixava, eram os amalequitas quem levava a taça. Sabendo disto, estavam dois amigos com ele, que foram buscar uma pedra para ele se sentar, e um de cada lado seguravam-lhe os braços até ao pôr-do-sol! Deste modo, os braços estavam sempre de pé. Acho que foi muito isto que aconteceu. Meti os meus melhores fones, a minha melhor banda sonora, arranjaram-me uma cadeirinha, foram-se revezando e nunca deixaram que os meus braços viessem para baixo. Confesso que sozinho, já teria os braços encostados ao chão, mas a reviravolta foi mesmo isto. Não me deixaram desistir, não me deixaram deixar de acreditar que era possível, não me deixaram cair os braços, fizeram-me lutar até ter a certeza que tinha a vitória garantida. Acima de tudo, vivi cada segundo e agarrei-me à vida ‘com unhas e dentes’. Mas ainda hoje não sei o porquê de me ter calhado a mim, talvez um dia saiba. Até lá, vou continuar a viver, como sempre vivi.
Texto: Simão Correia