Os locais para acolher deslocados internos aumentaram, só no mês de junho, de 89 para 111. Foto © UNICEF via Vatican Media

O número de crianças deslocadas no Haiti cresceu 60 por cento desde março, tendo ultrapassado as 300 mil (cerca de metade do total de deslocados), uma taxa que corresponde a uma criança deslocada por cada minuto que passa. Os números constam do mais recente relatório da UNICEF e mostram que 90% da população do país caribenho vive na pobreza, com três milhões de crianças a precisar de ajuda humanitária urgente.

A situação é particularmente difícil na capital, Porto Príncipe, em que os locais para acolher deslocados internos aumentaram, só no mês de junho, de 89 para 111, acolhendo quase 100 mil pessoas. Quanto às crianças, “são as primeiras vítimas da crise humanitária que se desenrola diante dos nossos olhos. As crianças deslocadas necessitam desesperadamente de um ambiente seguro e protetor, bem como de maior apoio e financiamento por parte da comunidade internacional”, alerta Catherine Russel, citada no relatório, destacando que os menores estão particularmente expostos à agressão, exploração e abuso sexual, e têm maior probabilidade de serem separados das suas famílias.

Também o risco de contrair doenças, como a cólera, está a aumentar sobretudo entre os mais novos devido às más condições de higiene dos campos de deslocados improvisados. Além disso, por serem forçadas a abandonar as suas casas e escolas, e não tendo outros meios de sobrevivência ou proteção, cada vez mais crianças aderem aos grupos armados que proliferam no país, naquela que é uma “clara violação dos seus direitos e do direito internacional”, denuncia o relatório.

Quase metade dos membros dos grupos armados são crianças

As últimas estimativas mostram que mais de meio milhão de crianças no Haiti vivem em bairros controlados por grupos armados, o que as coloca em maior risco de violência e recrutamento infantil. Elas são frequentemente compelidas a juntar-se a esses grupos, seja como um meio de sustentar as suas famílias, seja devido a ameaças. E muitas juntam-se aos grupos depois de terem sido separadas das famílias, como um meio de sobrevivência e proteção.

Já no relatório anterior, divulgado no final do mês de maio, a UNICEF estimava que “30 a 50 por cento dos membros de grupos armados são crianças sujeitas a coerção, abuso e exploração decorrentes da persistente fragilidade social, económica e política causada pela violência contínua que levou partes do país ao caos”.

“As crianças são usadas por grupos armados para diferentes tarefas, incluindo cozinheiras, faxineiras, ‘esposas’ ou vigias. Mas o que essas crianças têm em comum é a perda da inocência e da ligação com as suas comunidades. O impacto em cada criança afetada é uma tragédia que exige ação urgente. A sua proteção e bem-estar devem ser priorizados, incluindo o fim seguro da ligação com grupos armados, garantindo a sua reintegração na sociedade e facilitando o acesso seguro a serviços e suporte essenciais”, afirmava então Catherine Russel.

A história do pequeno Jean

“O meu bairro costumava ser muito calmo”, conta Jean (nome fictício), de nove anos, ao recordar aos técnicos da UNICEF como era a vida na zona de Savane Pistache, onde vivia, em Porto Príncipe. “Eu podia ir à escola. Podia ir ao médico quando estava doente. Podia brincar com os meus amigos. E podia comer tanto quanto quisesse… Mas tudo mudou da noite para o dia.”

Jean diz que estava a brincar com alguns amigos perto de casa quando ouviu barulhos muito altos. Não quis acreditar que fossem tiros, não tão perto de sua casa. Mas à medida que os sons se aproximavam decidiu correr para casa para ver o que estava a acontecer. “Vi fumo a subir pelo céu. As casas do bairro estavam a arder”, recorda. “A nossa única possibilidade de fuga era pela porta das traseiras. Tudo aconteceu tão rápido. Não tivemos tempo de levar nada.”

Histórias como a de Jean “tornaram-se tragicamente comuns nos últimos meses, à medida que a violência armada varreu Porto Príncipe”, destaca o relatório da UNICEF.

“Quando saímos do nosso bairro, vimos pessoas que tinham sido baleadas caídas no chão, cobertas de sangue. Estávamos no meio da rua e não sabíamos o que fazer”, prossegue Jean. “Para escapar do perigo, encontrámos um lugar numa colina. Passámos a noite lá, mas não conseguimos pregar olho.”

No dia seguinte, Jean e a família continuaram a sua jornada, embora não soubessem para onde deveriam ir em seguida. “Havia tantas pessoas na mesma situação que nós. Ver todas essas pessoas com sacos e outros pertences a fugir dos seus bairros foi muito estranho”, afirma.

A família de Jean encontrou um abrigo, mas estava demasiado cheio para que pudessem ficar, então continuaram a sua busca por um lugar seguro para descansar. “Eu estava descalço na rua”, assinala Jean. “Estava com fome e sede. Pensei que era o meu fim.”

A família de Jean finalmente encontrou outro abrigo, mas também não tinha espaço suficiente para todos. Não foi o fim, mas “foi muito difícil”, reconhece Jean. “Foi difícil ver o meu pai, o meu irmão mais velho e o meu tio partirem para encontrar outro abrigo. Fiquei com a minha mãe, as minhas irmãs, a minha avó e a minha tia.”

Felizmente, não tardou muito até que o resto da família encontrasse outro local. Mas alguns dias depois, Jean recebeu uma notícia terrível – o pai tinha regressado ao antigo bairro para tentar recuperar alguns pertences da família, e descobriu que a sua casa havia sido destruída, e a escola de Jean incendiada.

À semelhança de Jean, “dezenas de milhares de crianças haitianas estão a vivenciar horrores que nenhuma criança deveria vivenciar”, alerta a UNICEF: o medo de serem separadas da família, andar por ruas repletas de cadáveres, escolas incendiadas e o risco de serem agredidas ou mortas enquanto procuram um lugar seguro para se abrigar.

O fundo das Nações Unidas para a Infância diz precisar de 221,7 milhões de dólares (cerca de 205 milhões de euros) “para atender às necessidades humanitárias no Haiti em 2024”. Os donativos podem ser feitos através da página oficial da UNICEF na Internet.

Texto redigido por Clara Raimundo/jornal 7Margens, ao abrigo da parceria com a Fátima Missionária