Memorial em homenagem às vítimas do festival Nova, em 7 de outubro de 2023. Foto © Relspas, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons.

“As pessoas enviavam mensagens de voz e podíamos ouvi-las a sufocar”

Testemunho de Katy L. – Kibbutz Re’im:

«Pedi às crianças que tapassem os ouvidos. Se continuarmos vivos, não precisarão de se lembrar do que ouviram. Para o meu próprio processo de cura, decidi contar a minha história sobre o massacre ocorrido no kibbutz Re’im.

O último fim de semana deveria ter sido divertido. Na quinta-feira lançámos papagaios de papel com alguns amigos. Quem poderia acreditar que, três dias depois, os mesmos céus estariam repletos de terroristas que desembarcaram para aniquilar, destruir?

No dia seguinte, sexta-feira, 6 de outubro, depois de dois anos de persuasão por parte dos meus filhos e de Shai, fomos procurar um cão para adotar. Outra família já havia adotado o cão que queríamos. Voltamos cansados e dececionados a Telavive e confortámos as crianças.

No regresso a casa, passámos pelo estacionamento do Re’im e vimos a enorme produção (do Festival Supernova) da estrada. Vimos também os polícias, os seguranças e milhares de carros que estavam ali.

Na sexta-feira à noite celebramos no kibbutz, passaram-se 77 anos desde que o kibbutz foi fundado. No dia seguinte, às 6h29, a sirene de “alerta vermelho” da aplicação do meu telefone acordou-me. Rishon Le-Zion, Kiryat Gat, Yad Mordechai, o ecrã do telemóvel foi preenchido com nomes de localidades alvo de ataques numa questão de segundos. Tinha a certeza de que era um erro. Corri até ao quarto de Noam para o acordar, Shai tirou Ido da cama e fomos para o quarto seguro, onde Harel e o seu amigo Yair estavam a dormir.

“Só alguns minutos e voltaremos para nossas camas, com certeza.” Mas desta vez foi diferente. Sirenes de alerta vermelho consecutivas, sons constantes de explosões e de intercetação de mísseis. Entendemos que este não era um ataque habitual com mísseis.

Como estávamos com tanta pressa de entrar na sala segura, esqueci-me do telemóvel. Os telemóveis das crianças estavam a carregar na mesa do meu computador, do lado de fora da sala. Apenas Shai trouxe o seu telefone para dentro. Perguntei o que estava a acontecer e ele não me respondeu. Os seus olhos não saíam do ecrã nem por um segundo. Não muito depois disso, começámos a ouvir tiros. Ainda sem acreditar no que estava a ouvir, perguntei baixinho a Shai se era o que eu pensava, e ele anuiu com a cabeça. Enquanto isso, num grupo de WhatsApp, Hadas, nossa amiga, que também é mãe de Yair, escreveu que conseguia ouvir homens a gritar em árabe ao pé da janela. Eles estavam no kibbutz. E para isso não temos Cúpula de Ferro. Empurrei as crianças para debaixo da cama e pedi que ficassem quietas, que não falassem ou se mexessem. Elas fizeram o que eu disse. Fechámos a porta do quarto seguro e Shai segurava a maçaneta com força para que não pudessem abri-la pelo lado de fora. Ficámos lá em silêncio. A eletricidade falhou, estava escuro. Mantive o meu ouvido encostado à porta. Os pássaros cantavam. Eu gostava de acordar com o som desses chilreios.

Recebemos uma mensagem de uma mulher que teve o seu primeiro filho uma semana antes, dizendo que tinham incendiado a sua casa e que ela e a família estavam a sufocar no quarto seguro. Cerca de 30 minutos após o início dos alertas, os nossos amigos começaram a relatar que esses monstros tinham invadido as suas casas:

– Estão a atirar contra a nossa porta!
– Estão a disparar contra a janela!
– Estão a atirar granadas contra nós!
– Estão a tentar explodir a porta do nosso quarto seguro!
– Estão a tentar abrir a porta da sala segura, estamos a lutar para mantê-la fechada!

As pessoas enviavam mensagens de voz e podíamos ouvi-las a sufocar.

Duas horas e meia depois do início do ataque, ouvimos vidros a serem partidos dentro de nossa casa. As crianças estavam escondidas debaixo da cama. Pedi que tapassem os ouvidos. Se permanecêssemos vivos, não precisariam de se lembrar do que ouviram. Os monstros estavam dentro da minha casa, a discutir em árabe, indo de quarto em quarto à nossa procura. Os passos aproximavam-se, estavam atrás da porta e ninguém veio em nosso auxílio. Eles tentaram abrir a porta. As mãos de Shai seguravam a maçaneta com a maior força possível. Não conseguiram entrar.  Pudemos então ouvi-los enraivecidos dentro da nossa casa, a partir armários, levantar camas, despedaçar televisões. Rezei para que eles descarregassem toda a sua ira sobre a casa e os móveis, desde que continuássemos vivos. Nesse momento eu “desliguei”. Não conseguia ouvir, não conseguia ver, não conseguia entender. Apenas me balancei para a frente e para trás. Esperei que tudo acabasse. Sem saber como ia acabar. Contanto que acabasse. Shai fez-me voltar à realidade dizendo que terminara. Eles foram-se embora. A casa estava silenciosa. Passado algum tempo, permiti que as crianças abandonassem o esconderijo. Ainda dentro da sala segura, adormeceram numa questão de segundos e dormiram cerca de duas horas. Acordaram com fome. Yair, o menino que nunca teve fome, disse que se contentaria com pão duro, qualquer que fosse o que tivéssemos. Mas não tínhamos comida no quarto seguro. Harel perguntou se isso era como o Holocausto e Yair acalmou-o, dizendo que o Holocausto tinha durado anos e que o terror que estávamos a viver durara apenas algumas horas e não havia comparação entre os dois.

Pedi-lhes que se distraíssem pensando noutras coisas. Coisas positivas. Prometi-lhes que quando saíssemos faríamos uma festa e comeríamos piza. Isso deixou-os felizes e eles concordaram em esperar. Começámos a jogar, a ler livros e a pensar em todas as coisas deliciosas que comeríamos quando saíssemos. Yair então perguntou se os seus pais estavam preocupados com ele e eu garanti que os seus pais sabiam que estávamos bem. Os pais dele não conseguiam entrar em contacto connosco desde o momento em que os terroristas entraram em nossa casa porque estes tinham levado o router da internet e os telemóveis das crianças, que agora parecem estar em Khan Yunis, em Gaza. O pai de Yair provavelmente estaria a pensar que fomos feitos reféns.

Agora tínhamos que aguardar que alguém nos viesse tirar dali. Ninguém apareceu durante horas e horas. As crianças perguntaram se ainda havia uma hipótese das IDF [Forças de Defesa Israelitas] chegarem. O tempo passava e não parecia razoável. Por volta das 14 horas recebemos a notícia de que o Tsahal estava prestes a chegar e isso acalmou-nos um pouco. Depois de mais duas horas finalmente ouvimos em hebraico: “há uma porta aberta e uma janela partida”. Eles entraram e perguntaram se havia alguém lá dentro, eu gritei que sim. Pediram-nos para abrir a porta. Shai fez algumas perguntas para garantir a identidade deles e só então abriu a porta. Percebi então que havíamos sobrevivido. Pedi-lhes que olhassem ao redor da casa e se certificassem de que não havia terroristas. Pedi-lhes que nos preparassem para o que estávamos prestes a ver. Disseram-nos que a nossa casa estava destruída. Abraçaram-nos e apoiaram-nos, mesmo sendo muito jovens. Pediram-nos para não olharmos para a direita e para a esquerda ao passarmos pelos caminhos do kibbutz porque havia lá cadáveres.

O estacionamento do bairro estava arrasado, todos os carros danificados e os pneus furados, alguns queimados, outros roubados. O nosso pitoresco kibbutz verde foi transformado num campo de batalha, a cheirar a fogo, com vidros partidos e manchas de sangue. Fomos à sede do clube do kibbutz. Lentamente, mais e mais famílias entraram. Ouvimos falar de quem perdemos e percebemos que alguns dos nossos queridos membros do kibbutz foram feitos reféns. Os nossos corações ficaram despedaçados. Estamos muito longe de casa agora e muito mais seguros. Mas ainda estamos dentro da sala segura de muitas maneiras. Ninguém sabe para onde voltaremos, como continuaremos como país, como será o kibbutz, mas venceremos.

Não há outra opção.»

“A coisa mais assustadora que me poderia acontecer, aconteceu!”

[Testemunho de Bar M.]

«A pista de dança estava agitada e cheia de gente linda e feliz que aguardava pelo nascer do Sol. Não há absolutamente nada como o nascer do Sol numa festa, o melhor de tudo. O nascer do Sol foi substituído por luzes. A música parou e o som de uma sirene de “alerta vermelho” soou ao fundo. Bombardeamento pesado, daqueles que aparecem nos noticiários, que só os moradores do Sul conhecem.

O corpo entrou em estado de choque, mas percebemos que precisávamos de fugir de imediato. Essa decisão que tomámos em segundos provavelmente salvou as nossas vidas.

Entrámos no carro, conduzimos até à saída, um pânico louco por toda a parte. As pessoas corriam e pensei comigo mesmo que com as sirenes vermelhas de alerta é claro que haveria pânico, é preciso procurar uma área protegida. Chegámos a um cruzamento em T com opções para virar à direita ou à esquerda. Decidimos virar à esquerda.

Subitamente havia veículos à nossa frente em todas as direções da estrada, alguns capotados, pessoas a sangrar, corpos dentro dos carros e sons de tiros.

O meu corpo entrou em estado de choque, senti os meus maxilares e os meus dentes a tremerem de medo. Percebemos que se continuássemos nessa estrada, provavelmente seríamos os próximos da fila. Invertemos a marcha.

E as outras imagens? Só Deus e eu sabemos o que vi. Uma carrinha branca estava parada na beira da estrada bem à nossa frente. Sabíamos que não havia caminho de volta. O meu marido, Lior, e eu baixámos a cabeça e ele acelerou. Os meus ouvidos ouviram rajadas e mais rajadas, sons de tiros que nunca me abandonarão. O metal do carro foi perfurado, mas nós não parámos de conduzir. Bippp Bippp. O carro imobiliza-se. O meu coração também parou. Este vai ser o nosso fim. Isto não pode acontecer connosco, por favor, Deus, não pode ser, temos dois filhos à espera em casa. Cada decisão tomada foi numa fração de segundo. Decidimos correr para salvar as nossas vidas, para longe do carro, para a berma, e procurar um lugar onde nos esconder. A primeira coisa que me veio à cabeça foi que eles estavam ali, e não só que estavam ali, mas também veriam o veículo vazio e iriam perceber que estávamos por perto. Não havia para onde correr, tudo estava exposto. Se estivéssemos ali, teríamos sido vistos. Havia uma cerca na nossa frente, mas mesmo que quiséssemos saltar, não conseguiríamos. Percebemos que tínhamos que ficar no local onde estávamos e não devíamos ser descobertos. Começámos a escavar a terra e a cobrir-nos com folhas. Ficámos em silêncio absoluto, prendendo a respiração, e ao fundo tiros ininterruptos, veículos iguais ao nosso a serem atingidos, um após outro. Sabíamos que não havia como ajudar, não nos podíamos mover nem por um segundo. Tentei ligar para a polícia, mas eles não atenderam. Tentei o corpo de bombeiros, uma ambulância, mas ninguém atendeu. Enviei uma mensagem para a minha amiga Mai que, quando tudo aconteceu, seguiu numa direção diferente da nossa, por isso, percebemos que estava na mesma situação que nós. A minha respiração acelerou, o meu coração batia forte. Pela primeira vez senti como era fazer chichi de medo. Os meus pais ligavam e eu não conseguia atender. Mandei uma mensagem para o meu irmão a explicar o que estava a acontecer e a implorar para que ele nos viesse resgatar, mas disse-lhe para não contar aos meus pais.

Depois de algumas horas ouvimos a sirene de uma ambulância. Decidimos imediatamente que era hora de sair rapidamente e correr em direção à estrada. Foi como a cena de um filme, connosco como atores principais. Ficámos parados no meio da estrada, exaustos, num pranto e a acenar com as duas mãos para o motorista parar. Era uma ambulância e com ela um carro da polícia e um veículo militar. Entrámos no veículo militar e sentámo-nos no banco traseiro. De repente começa um tiroteio entre polícias, soldados e terroristas. Percebemos que ainda não havia acabado. Do nada, chegou um carro com um casal que assustadoramente nos contava que os seus filhos não respondiam e ninguém sabia o que estava a acontecer. As IDF sabiam que seria seguro irmos com aquele casal e transferiram-nos para lá. O casal levou-nos até um local seguro, onde o meu irmão já estava à nossa espera de carro. Voltámos para casa, sem entender o que tinha acontecido connosco. Chegámos a casa dos meus pais e só então comecei a perceber que milagre nos tinha acontecido, pois  a minha mãe caiu no chão, em lágrimas e começou a gritar. As lágrimas não pararam, nem tranquilizantes conseguiram acalmar os meus pensamentos, as vozes, os tiros, os gritos.

Dia após dia tornou-se mais difícil a ideia do que teria acontecido se tivéssemos esperado um pouco mais perto do carro em vez de conduzir dali para fora. O que teria acontecido se as balas tivessem atingido um de nós e não o carro.

O pensamento de todas aquelas pessoas que estavam connosco e não sobreviveram. A ideia de que poderíamos ter sido nós a ser feitos reféns.

Pensar em todas aquelas crianças reféns, sou mãe, despedaça-me. Pensamentos como esses e muitos outros que simplesmente não param.

Dois dias sem dormir.

Dois dias a caminhar como um fantasma.

Dois dias em que os meus olhos estão inchados e doridos de tanto chorar.

Dois dias em que o meu estômago se revira.

Dois dias em que tenho um medo louco, de qualquer barulho, de qualquer som. Dois dias em que olho para os meus filhos e não consigo acreditar.

Dois dias em que estou rodeada de familiares e amigos, e de mensagens de preocupação e o desejo de ajudar de pessoas com quem não falo há anos.

Ainda tenho dificuldade de digerir. Não sei como continuar a partir daqui. O meu coração está partido.

O que eu sei é que a coisa mais assustadora que me poderia acontecer, aconteceu! E levaremos muito tempo para nos recuperar.

Temos dois filhos em casa que precisam do pai e da mãe e eles são a nossa força. Graças a Deus nada aconteceu ao meu marido, porque não sei como teria lidado com isto sozinha.»

Texto redigido por Helena Ferro de Gouveia ao abrigo da parceria entre o jornal 7Margens e a Fátima Missionária.