“Um dos problemas com os homens afro-americanos é que muitos deles ainda não estão prontos para votar numa mulher”, diz, em tom quase premonitório, Rohulamin Quander, enquanto caminha pelo campus da Universidade Howard, em Washington, onde ele próprio estudou e também é a alma mater de Kamala Harris, a vice-presidente dos Estados Unidos da América (EUA). A conversa foi em vésperas das eleições presidenciais que a democrata Harris perdeu para o ex-presidente Donald Trump, e hoje sabe-se que a 5 de novembro uma surpreendente parte do eleitorado masculino negro votou no candidato republicano (três em cada dez negros com menos de 45 anos). Não foi essa a causa da derrota de Harris, filha de um jamaicano e de uma indiana, mas revela algumas características da comunidade afro-americana que Quander, juiz reformado e historiador, atribui ao legado da escravatura. É um tema que lhe é muito pessoal: descende de escravos da plantação de Mount Vernon, na Virgínia, que pertencia a George Washington, o general vencedor da guerra da independência contra a Coroa Britânica e primeiro presidente dos EUA em 1789.
“É dececionante para mim que não se entenda que a disfunção da família afro-americana é em parte devido ao facto de que não há homens na família, que as mulheres não têm maridos e os filhos veem os pais desertar. Isso é um resquício da escravidão, onde as famílias foram despedaçadas, e aqui estamos 150 anos depois daquele tempo, e mais do que isso, e muitos homens afro- americanos, sobretudo os com menos estudos, sentem que não querem votar numa mulher”, lamenta Quander, referindo-se ao grande número de mães solteiras na comunidade afro-americana, também a que dada a elevada taxa de detenção de homens negros, muitas crianças cresçam sem uma referência masculina.
Mas, continuando a falar sobre Harris, a procuradora que Joe Biden escolheu em 2020 para vice-presidente e agora o substituiu como candidata, o historiador também previu dificuldades junto de outros eleitorados: “Alguns americanos brancos, depois de terem eleito e reeleito Barack Obama, não querem votar num negro novamente, então não querem votar numa mulher negra. E há alguns outros, não sei quantos são, que simplesmente não querem votar em alguém que tão recentemente, em suas mentes, imigrou. Kamala nasceu cá, mas os pais chegaram vindos de fora. Claramente, ela é a mais qualificada, sem dúvida. E eu gostava que fosse eleita. Mas ainda há muito preconceito. Por ser mulher, negra e filha de imigrantes”.
Sobre a vitória de Obama, filho de um queniano e de uma branca do Kansas, em 2008, Quander admite que foi histórica, que fez a diferença num país ainda com feridas históricas ligadas à questão racial, mas que também teve o efeito de erradamente fazer crer que o racismo tinha acabado na América. “Houve quem nunca aceitasse Obama. E o racismo não desapareceu. Por isso tivemos em Charlottesville os tumultos raciais e outros, por isso surgiu o movimento Black Lives Matter. Os supremacistas brancos rejeitam a ideia de igualdade e veem Trump como alguém a quem eles podem agarrar-se e tentar expressar alguns dos seus sentimentos racistas, sentimentos antissemitas, antinegros, antifemininos”.
Os afro-americanos são hoje cerca de 40 milhões, uns 13 por cento dos americanos. É uma comunidade muito miscigenada, basta pensar ainda no tempo da escravatura os muitos filhos dos donos das plantações com as suas escravas. Sabe-se, por exemplo, que Thomas Jefferson, autor da Declaração de Independência de 1776 e terceiro presidente, viveu maritalmente com Sally Hemings, com a qual teve vários filhos que nunca foram alforriados. É também uma comunidade que nem sempre aceita bem os imigrantes negros chegados de África ou das Caraíbas, e o próprio caso de Obama é revelador, pois foi a figura da mulher, Michelle, descendente de escravos nos EUA, que os levou a aceitá-lo como um dos seus apesar das raízes no Quénia e ser mestiço.
Sobre Washington e Jefferson terem sido donos de escravos, apesar de todos os ideais de liberdade que defendiam, Quander diz que é preciso saber lidar construtivamente com essa contradição: “temos que continuar em frente, temos que continuar a viver. Integro uma organização chamada Liga dos Descendentes dos Escravizados de Mount Vernon. Nós somos a geração que descende dos ancestrais que foram escravizados. Então a nossa ênfase hoje é reconhecer, tanto quanto pudermos, o papel dos nossos ancestrais escravizados, os nossos tetravós, e perceber que eles construíram a plantação. Eles construíram a casa. Eles pescaram e processaram o peixe. Eles administraram as destilarias e processaram o rum para vender. Eles merecem ser reconhecidos. Reconhecemos George Washington como o pai da nossa nação, mas também dizemos que a única razão pela qual ele conseguiu ir para Trenton e Saratoga ganhar as batalhas é porque os nossos ancestrais mantiveram as fogueiras acesas. Nós garantimos que tudo estava a funcionar corretamente na plantação para que ele pudesse ir e construir uma nação. Olhe para Thomas Jefferson, que escreveu a Declaração de Independência, que proclama que “todos os homens foram criados iguais”. Ele não acreditava nisso. Sabemos que “todos” não incluía todos os homens, também não incluía mulheres, e não éramos iguais. Mas reconhecemos que agora estamos prestes a celebrar o 250.º aniversário da nossa nação em 2026. Agarramos nessas palavras, e elas são palavras poderosas, e estamos a esforçar-nos para lhes dar sentido total. Vejamos, James Madison, que escreveu a Constituição, onde diz, “nós, o povo, numa união mais perfeita”, todos nós, os negros especialmente, somos “o povo”. E “a união mais perfeita” é uma meta que estamos a trabalhar para atingir. 2026, um ano depois do próximo, teremos o nosso 250.º aniversário. Não é uma união mais perfeita, mas é melhor do que era”.
Um presidente, Obama, mas também congressistas, juízes, generais, empresários, astronautas, cientistas, escritores, atletas, artistas, hoje não parece haver área em que os afro–americanos não possam ser bem sucedidos. A escravatura foi abolida na sequência da Guerra Civil de 1861-1865, quando Abraham Lincoln salvou a União, e a segregação racial no Sul desfeita nos anos 1960 graças ao movimento dos direitos civis liderado por Martin Luther King. O caminho continua a ser feito, e nem sempre a direito. Mas diga-se também que desde o início, houve quem lutasse contra o racismo, sobretudo no Norte, e entre os pais fundadores está John Adams, o segundo presidente, que nunca teve escravos e cujo filho, John Quincy Adams, que foi o sexto presidente, ativamente desafiou a escravatura.
“É hoje bem possível que homens e mulheres negros sejam bem-sucedidos na América, se lhes for dada a oportunidade. Toda a história foi para negar aos negros a oportunidade. E uma vez que tivemos a oportunidade, veja, invenções, cientistas, a chefiar corporações, médicos, advogados, todos os tipos de técnicos, mostramos que podemos fazer isso, e fizemos. Nós construímos esta cidade. Nós construímos o Capitólio de Washington. Construímos a Casa Branca. Construímos o primeiro Smithsonian. Fizemos a fundação do Monumento a Washington”, diz Quander, cujo livro ‘The Quanders’ conta a história de uma linhagem que remonta ao século XVII nos EUA, nos estados da Virgínia e do Maryland. Alguns dos seus antepassados em Mount Vernon fariam parte dos 123 escravos que Washington deixou em testamento serem libertados depois da morte de Martha, a mulher.
Católicos votam Trump, mas Igreja espera para ver
O arcebispo Timothy Broglio, presidente da Conferência Episcopal dos EUA, deu os parabéns a Donald Trump pela sua eleição a 5 de novembro e pediu-lhe que passasse “da campanha à governação” e que tudo fizesse para “uma transição pacífica” de uma presidência para a outra. Em setembro, numa rara tomada de posição política, o Papa Francisco tinha apelado aos católicos americanos que votassem no “mal menor”, e, embora sem nunca referir os nomes de Trump ou Kamala Harris, declarou que “ambos os candidatos são contra a vida, seja o que expulsa imigrantes, seja o que mata bebés”. A promessa de expulsão dos imigrantes ilegais foi um tema forte da campanha republicana, tal como o da defesa do direito ao aborto foi omnipresente na campanha democrata.
As sondagens à boca das urnas revelam que uma maioria de católicos votou em Trump. Representando cerca de um quinto dos votantes, os católicos americanos, segundo a NBC, preferiram em 58 por cento dos casos Trump contra 40 por cento que escolheram Harris. Uma sondagem similar divulgada pelo Washington Post dava 56 por cento dos católicos a votar Trump e 41 por cento em Harris. Em alguns estados, como a Pensilvânia e o Michigan, o voto católico terá sido decisivo para a vitória de Trump.
Trump é um protestante, tal como Harris, que poderá ser classificada como batista, mas a vice-presidente agora derrotada teve contacto desde a infância tanto com o cristianismo do pai jamaicano como com o hinduísmo da mãe indiana. E é casada com um judeu. Trump, por seu lado, é casado com uma católica nascida na Eslovénia. Quanto ao presidente cessante, Joe Biden, é católico, apenas o segundo na história dos EUA a chegar à Casa Branca (o primeiro foi John Kennedy).
Além do aborto, sobre o qual Trump tem uma posição dúbia (apesar de ter nomeado os juízes conservadores que influenciaram o fim da proteção constitucional à interrupção voluntária da gravidez), a Igreja Católica critica fortemente a pena de morte nos EUA, que não foi tema debatido na campanha. A imigração vai ser provavelmente nos próximos meses o grande ponto de desavença entre o futuro presidente e a Santa Sé.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN